CRÔNICAS

Velório no interior

É comum dizer que pessoas nascem e morrem o tempo todo. No entanto, quando eu era criança, coloquei mais a mão em defuntos do que em bebês. Nunca me animei a ir em velórios, mas acompanhava meus pais com medo de que o falecido sentisse minha falta no meio da noite e fosse até minha casa me buscar.

Recordo-me que se alguém partisse dessa para uma melhor, logo se reunia uma multidão, onde as pessoas cantavam, sempre as mesmas músicas, segura na mão de Deus e a mãezinha do céu, rezavam o pai nosso, a ave Maria e o creio, liam algumas passagens bíblicas, contavam causos, tomavam chimarrão e assim como todos os velórios, falavam maravilhas sobre o falecido.

Alguns anos atrás, não havia a tecnologia de hoje, aquele que tinha entendimento sobre funerais tocava nove badaladas do sino da igreja, e a comunidade ficava sabendo que naquele dia alguém havia falecido. Em consequência disso, um morador ia de casa em casa informar aos vizinhos sobre a triste notícia. Também não existia capela mortuária, o morto era velado em sua própria residência. Afastavam os móveis, deixando espaço para circulação, geralmente, posicionavam o caixão no centro da sala, ao redor dele as pessoas faziam a vigília e davam apoio à família.

Alguns vizinhos, parentes e amigos traziam pequenos ramos de flores para prestar homenagem a quem já se foi, também transmitiam carinho aos familiares. Aqueles que entravam na casa iam dar as condolências aos parentes do falecido, depois seguiam até o caixão se despedir, colocavam as mãos nas mãos cruzadas do morto, que deitado em seu leito parecia dormir, tranquilamente, um sono eterno.

Ainda me lembro dos rituais fúnebres do interior e das várias mãos geladas em que tive que tocar, todos eram cobertos com um lençol branco de renda e carregavam um rosário entre os dedos. No ambiente, o cheiro de velas e crisântemos espalhavam-se pelo ar.

Durante o velório, sempre surgiam algumas crendices: se o defunto abrisse os olhos em breve outra pessoa da família iria morrer, alguém próximo dele deveria falar no ouvido do ente querido para seguir em paz e fechar os olhos novamente. Se os cachorros uivavam era porque a morte ainda estava circulando pelo lugar. Caso uma coruja cantasse à noite ou subisse no telhado, ela estava chamando a morte da família. Se uma galinha resolvesse cantar como galo, a inocente, rapidamente, virava risoto, pois estava atraindo doença para o lar. Eu não fazia ideia do que era verdade ou mentira, mas até hoje não deixo meus chinelos virados para meus pais não morrerem.

Um dia vieram avisar meu pai que seu Tibério havia falecido. Morte natural. O homem acordou cedo, tomou duas canecas de leite e foi plantar uns legumes na horta, colheu uma melancia e lá mesmo, embaixo da sombra da jabuticabeira comeu uma fatia, dizem que ele passou mal, foi se encostando na árvore, virou o rosto para o lado e, definitivamente, fechou os olhos. Há quem diga que ele teve uma congestão alimentar, mas seus noventa e dois anos já pediam para o corpo descansar.

Assim como a maioria dos mortos católicos, Seu Tibério teve seu dia de finado. Tudo foi preparado de acordo com a tradição, após velarem ele por 24h, um veraneio levou o caixão até a igreja para a missa de corpo presente. A viúva e seus oito filhos, com genros, noras, netos e bisnetos sentaram nos bancos da frente da capela.

Enquanto o padre fazia a celebração, começou um murmúrio entre eles, todos pensaram ser a dor da saudade, tristeza ou muita emoção. Nada disso, o irmão mais velho e o irmão mais novo começaram a brigar pela herança que o velho iria deixar, o barulho foi tão grande que o padre não conseguiu terminar as rezas.

O filho primogênito dizia que ele foi quem mais trabalhou, que deveria ficar com tudo que o pai dele deixou. O mais novo alegava querer estudar, precisava de dinheiro, não queria ter a mãe para cuidar. Um irmão do meio dizia que só ele quem ia visitar os pais, era o único que dava atenção, seria justo se ele ficasse com os bens. A única irmã mulher argumentava ser doente e não tinha condições de trabalhar, por isso precisava do patrimônio do pai para sobreviver.

Teve um irmão ( não sei dizer qual era a sua ordem na sucessão fraternal) que estava preocupado em tirar a aliança e a dentadura do pai, pois ele ouviu por aí que não era bom enterrar o corpo com ouro. Os outros três só choravam ao redor do caixão, não sei dizer se as lágrimas eram pela perda do pai, de vergonha, ou medo de não sobrar herança para eles. Nunca vi tanta confusão, ainda bem que o morto já estava morto, pois se ele estivesse vivo e visse aquilo, ia morrer de decepção.

Joceane Priamo

Joceane Priamo nasceu em Francisco Beltrão-PR, em 23 de maio de 1988. É formada em Letras Português e Literatura pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e Pedagogia pela Faculdade Campos Elíseos (FCE), pós-graduada em Docência no Ensino Superior, Antropologia, Educação Especial e Intelectual. Em março de 2021, lançou seu primeiro livro, Francisco Beltrão entre Versos e Sonhos. Participa da coordenação da Via Poesis e como membro do Centro de Letras de Francisco Beltrão, é professora, escritora, poetisa e cronista.