No imaginário país de Banânia
Por Luciano Trigo
Ainda sob o impacto da leitura do livro Totalitarismo suave, do dissidente americano Rod Dreher, resenhado no meu artigo prévio, naveguei aleatoriamente pela internet em busca de sites ligados à educação que abordassem o tema, para conferir que tipo de informação está sendo passada aos estudantes.
Chamou a minha atenção o interessante texto “Princípios do totalitarismo”, postado em um site dedicado a pesquisas escolares do ensino médio.
A autora lista, de forma bastante sintética e objetiva, as cinco características principais dos regimes totalitários, a saber: o controle da vida dos cidadãos, a concentração do poder, o intervencionismo econômico, a censura/perseguição política e o controle hegemônico dos meios de comunicação.
Convido o leitor a fazer o seguinte exercício: comparar dois governos (imaginários) de um país (também imaginário) chamado Banânia para, à luz dos critérios listados no texto citado, analisar qual deles mais se aproxima das práticas do totalitarismo.
1 – Controle
“O governo tem grande poder e influência na vida dos cidadãos, regulando sua liberdade de expressão, as informações disponibilizadas pelos veículos de comunicação, a economia, o trabalho e outras questões da vida pública e privada da população”.
Governo A: No imaginário Governo A do imaginário país de Banânia, a liberdade de expressão é quase absoluta, a ponto de um jornalista poder defender abertamente uma intervenção militar para derrubar o presidente, sem temer ser acusado de golpista ou qualquer retaliação por parte do governo. Outro jornalista escreve um artigo desejando que o presidente morra. Normal.
Nas redes sociais e na grande mídia, o Governo é massacrado diariamente, sem que ninguém receie acordar com a polícia batendo na porta por ter postado ofensas ao presidente no Twitter, ou por ter dado “joinha” em uma conversa de um grupo privado de WhatsApp. Dá até para jogar futebol com a cabeça do presidente servindo de bola, e os intelectuais acham isso bonito.
Governo B: No imaginário Governo B do imaginário país de Banânia, a liberdade de expressão é relativizada, e até se fala na criação de um Ministério da Verdade. Redes sociais são pressionadas a excluir postagens que não agradam ao governo. Empresas são constrangidas a demitir quem se opõe ao governo. Articulistas precisam medir as palavras sempre que se afastam do apoio incondicional ao governo.
Institui-se democraticamente o crime de opinião e pensamento: jornalistas, humoristas e até deputados eleitos podem sofrer sanções severas caso ousem criticar determinadas agendas. Justificando a necessidade de controle do conteúdo das plataformas, um pesquisador afirma que somente em Estados ditatoriais a liberdade de expressão é ilimitada. Tempos antes, outra pesquisadora já havia acusado a ditadura da liberdade de expressão de minar o processo democrático.
2 – Poder
“A ideologia política por trás do totalitarismo permite a existência de apenas uma orientação partidária, a fim de evitar conflitos de interesses. Existe apenas um único partido, com poder absoluto”
Governo A: No imaginário Governo A do imaginário país de Banânia, as pessoas podem se declarar de oposição sem temer qualquer tipo de represália. (Aliás, ser de oposição pega até bem e rende likes nas redes sociais, entre outras recompensas.) O embate entre diferentes posições ideológicas ou partidárias não resulta na perseguição, muito menos na prisão, de adversários políticos. Aliás, se existe perseguição e até prisão, é contra partidários do governo, não da oposição.
Governo B: No imaginário Governo B do imaginário país de Banânia, qualquer cidadão que não se alinhe à hegemonia do partido no poder é desqualificado como uma ameaça à democracia e vira um alvo em potencial para linchamentos e campanhas de difamação no tribunal sumário da internet. De novo: do risco de cancelamento nas redes sociais ao bloqueio de contas bancárias e confisco de passaportes não estão livres jornalistas, humoristas e nem mesmo deputados eleitos.
3 – Economia
“O regime totalitário realiza várias intervenções econômicas, controla as empresas estatais, desenvolve a indústria e controla a classe trabalhadora”
Governo A: O imaginário Governo A do imaginário país de Banânia defende a redução do peso do Estado na economia. Aprova uma legislação que incentiva a liberdade econômica e facilita a abertura de empresas (e, consequentemente, a geração de milhões de empregos). Privatiza algumas empresas estatais – bem menos do que gostaria – e aquelas que são mantidas passam a dar lucro, depois de anos de prejuízos bilionários. Desnecessário dizer, o Governo A não simpatiza com o controle da classe trabalhadora pelos sindicatos.
Governo B: O imaginário Governo B do imaginário país de Banânia defende o aumento da intervenção do Estado na economia, a expansão dos gastos públicos e até mesmo a “desprivatização” de algumas empresas. Também defende a volta do imposto sindical, ainda que com outro nome, e a revisão da reforma trabalhista.
4 – Repressão
“Vários instrumentos de repressão são utilizados, como a censura, a perseguição política e a violência. Tudo é justificado pelos interesses nacionais. Não existe liberdade civil. O controle policial é baseado na tortura física e psicológica”
Governo A: No imaginário Governo A do imaginário país de Banânia, se existem censura, perseguição política ou mesmo violência, estas vitimam partidários do governo, não seus adversários: é uma espécie de totalitarismo às avessas. A liberdade existe sim, mas só para criticar, não para defender ou aprovar o governo. Deve ser porque somente em Estados ditatoriais a liberdade de expressão é ilimitada.
Governo B: No imaginário Governo B do imaginário país de Banânia, a relativização da liberdade de expressão – com o pretexto da defesa democracia – enseja o surgimento e a normalização de diferentes formas de censura. Incluindo a autocensura, pois muitas pessoas passam a se calar para evitar potenciais aborrecimentos.
Tudo, aliás, é justificado pela defesa da democracia. Não existe tortura física, mas há quem considere o tratamento pelo Governo B dado a adversários políticos uma forma de tortura psicológica. De qualquer forma, como demonstrou Rod Dreher em seu livro, hoje existem formas mais suaves e eficazes de totalitarismo, que dispensam a violência física.
5 – Hegemonia
“Tudo é permitido para manter a hegemonia de poder no regime totalitário. O uso de força é frequente e a visão ideológica do governo precisa ser aceita pela sociedade. O controle dos meios de comunicação também é um princípio básico do totalitarismo”.
Governo A: No imaginário Governo A do imaginário país de Banânia, as pessoas são livres para rejeitar de forma áspera a visão ideológica do governo. O presidente é desqualificado como fascista e genocida dia sim e outro também. Quem aprova o governo ou qualquer medida que ele anuncie, mesmo quando ela favorece os mais pobres, é imediatamente rotulado de gado e considerado um inimigo da democracia. Se existe controle dos meios de comunicação, não é por parte do governo, e sim da oposição.
Governo B: No imaginário Governo B do imaginário país de Banânia, o cidadão comum é constrangido a aceitar a visão ideológica do governo, com o apoio (voluntário e supostamente desinteressado) dos grandes meios de comunicação. Quem não aceitar essa visão ideológica hegemônica, que arque com as consequências. Onde já se viu criticar o governo em uma democracia?
Feito o exercício, qual dos dois governos mais se encaixa nos critérios de totalitarismo apontados, na opinião do leitor? O Governo A ou o Governo B?
Ainda bem que não vivemos no imaginário país de Banânia, onde o imaginário Governo A é fascista e asqueroso, e onde o imaginário Governo B detém o monopólio da verdade, do amor e da defesa da democracia. Deve ser horrível morar em um país assim.