CRÔNICAS

O sabor do amor

Têm cheiros, sabores e imagens que a gente nunca esquece, tiveram tanto significado que mesmo não sendo registrados em cartórios ou por câmeras fotográficas permanecem intactos, vivos, tanto no coração como na memória.—Mas como guardar o gosto ou o aroma do que já acabou?

Impossível! É ilusório! Questionava Maria, enquanto a sua mãe batia quatro ovos numa bacia…

—Nada é impossível para aqueles que amam, minha filha. O amor vive nos detalhes,são os pequenos gestos que demonstram o quanto alguém é importante para nós. O amor está nas palavras,nos momentos de carinho, num simples agrado, ele não se esconde atrás das riquezas do mundo, não precisa de pódio nem de glamour.

— Por isso a senhora não desiste da tia Daniela?

— Sim, minha filha. Quando eu era criança ela cuidou de mim, hoje sou eu quem cuido dela. Quando o amor é verdadeiro ele não se desgasta com o tempo, nem se cansa. Ele não está presente somente nos momentos bons, com ele, também, superamos os momentos difíceis com força e coragem.

— Mãe, mas o amor dá  muito trabalho?

— Minha filha, não espere por um amor perfeito, ele não existe. O amor só precisa ser sincero, devemos entregá-lo ao outro com o coração, sem esperar nada em troca.

— Então…quando alguém esquece do amor, o que devemos fazer?

— Não desistir dele! Veja a tia Daniela, ali,sentada no sofá, olhando para o além, ninguém sabe no que ela está pensando. Ela viveu intensamente, colecionou muitas memórias felizes nesses longos anos, conheceu pessoas, fez amigos, mas também, teve decepções, conheceu as ilusões da vida e experimentou muitas dores,mesmo assim, sempre fez tudo que pôde pelos outros, sabe por quê? Não!Ela nunca deixou de acreditar no amor.

— Desde menina, ela sempre se destacava por onde passava, gostava de ajudar, tinha facilidade de se envolver com as pessoas e interagia sobre os mais diversos assuntos, a comunicação nunca foi um problema, apenas algo lhe fazia ficar sem palavras: um bolinho de chuva.

— Como assim?

— Esse simples bolinho a guiava para uma trajetória sentimental, onde a recordação lhe transportava para infância,era nesses momentos que ela se servia do silêncio.Uma doce lembrança que não se perdeu na memória, pois o principal ingrediente era o doce sabor do amor.

 — O que? — Um bolinho de chuva pode aquietar uma pessoa? — Sim, pode.

— A tia Daniela comia demais?  Perguntou Maria.

— Não!

— Então, explica-me.

— Quando ela e eu éramos crianças, nossa mãe era muito cuidadosa conosco. Eu lembro que ela sempre limpava a nossa pele com óleo de rosas, depois ela passava um brilho labial que vinha numa embalagem em formato de morango, era delicioso, não foram poucas as vezes que eu e Daniela comemos aquele batom.

— E a vovó brigava com vocês?

— Não, minha filha. A Vovó tinha uma alma muito plena para brigar.

— Então a vovó gostava de usar maquiagem. Posso ser igual a ela? Também gosto de me maquiar, quero pintar as minhas unhas de vermelho e passar sombra nos olhos.

— Talvez quando você crescer, Maria.

— Mas a vovó usava, também quero.

— A vovó era uma pessoa bem discreta, como te disse, estava sempre de cara limpa e apenas um brilho nos lábios, prendia as laterais dos cabelos com ramona e não usava nada que chamasse muita atenção.

— Não entendo, mamãe. Se ela não chamava tanta atenção, porque as pessoas falam tanto sobre ela?

— Ela não se importava com a aparência, o que ela valorizava era a essência.

— Por isso a tia Daniela fica tão quieta quando você faz o bolinho de chuva da vovó?

— Sim. O melhor bolinho de chuva do mundo era da sua vovó. É uma pena que você não pôde conhecê-la, mas poderá aprender a receita que ela nos deixou, assim, novas gerações degustarão o sabor de um bolinho que reuniu a nossa família muitas vezes e que sempre foi preparado com muita alegria.Bastava o tempo escurecer e dar sinais de chuva que sabíamos que teríamos bolinho para o café ou nos dias frios de inverno, ficávamos ao redor da mesa esperando. Ela servia ainda quentinho, após fritar, ela polvilhava açúcar e canela com muito carinho.Não esqueço o sabor, as gargalhadas e as conversas de quando estávamos reunidos.

—Sem dúvida, momentos como esse são especiais,e ficam gravados na memória, mamãe.

 –Sim, Maria. Aquela receita é a mesma que faço hoje, ela não é apenas gustativa,nem é uma ameaça para os pratos dos melhores chefes do mundo, este bolinho é muito mais do que uma especialidade da culinária, ele é a representação dos vários momentos felizes que vivemos em família, ele é a definição do amor.

Naquilo, Maria serve uma xícara de café recém-passado, coloca quatro bolinhos de chuva num pires e leva até a cadeira de balanço, onde está sentada a tia Daniela. O olhar da tia é distante, faz anos que não reconhece mais ninguém, o alzheimer transformou todas as pessoas que ela amava em estranhos. No entanto, quando ela vê os bolinhos, os seus olhos brilham e as lágrimas escorrem pela face, um lindo sorriso se forma no rosto, e todos conseguem tê-la de volta por alguns instantes.

Joceane Priamo

Joceane Priamo nasceu em Francisco Beltrão-PR, em 23 de maio de 1988. É formada em Letras Português e Literatura pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e Pedagogia pela Faculdade Campos Elíseos (FCE), pós-graduada em Docência no Ensino Superior, Antropologia, Educação Especial e Intelectual. Em março de 2021, lançou seu primeiro livro, Francisco Beltrão entre Versos e Sonhos. Participa da coordenação da Via Poesis e como membro do Centro de Letras de Francisco Beltrão, é professora, escritora, poetisa e cronista.