ALETHEIA

Pastor Dorival

– “Trazei os dízimos à casa do tesouro para que haja mantimento na minha casa” …E assim, Dorival, ou melhor, Pastor Dorival, terminava os cultos aos domingos.

Era sagrado que, ao final dos encontros, terminada toda a cerimônia, alguém se achegasse ao pastor para pedir oração.

“Mas e o dízimo, está em dia?” era a frase que era unanimidade após as orações no turno extra. “Sem fidelidade, Deus não opera, irmão!”, repreendia o pastor a todo fiel não contribuinte.

Até que, certa vez, um desconhecido ficou após o término do culto. Disse que precisava falar com o pastor Dorival. Uma urgência.

O Desconhecido

– Prezado, sou o Carlos. O inverno está chegando e sou responsável pelo cuidado social daqui do bairro. Estava organizando meios para a doação de roupas e mantimentos para as os moradores de rua. O senhor acha que consegue ajudar? – Pediu ao pastor.

Olhando dos pés à cabeça do rapaz, Dorival imediatamente negou, mentindo:

– Carlos, certo? Já temos nossa própria forma de caridade na igreja. Não iremos conseguir ajudar nessa empreitada. Lamento.

Desolado, a rapaz sai da igreja. Pensava, como qualquer um, que tratando-se de caridade, a ajuda seria irresistível pelo público religioso.

Chamado eclesiástico

Dorival, além de pastor, fazia bicos de pedreiro. Em casa, com a mulher e uma filha, nunca faltara nada, mesmo que vivessem com pouco.

Era um homem de muito orgulho, “regrado pela Palavra”. Suas convicções o ensinaram que homossexualidade era pecado, e por isso, não aprovava ver gays andando de mãos dadas na rua. “Imoralidade!”, sempre dizia.

Quando um casal chegava até ele para que mediasse os conflitos matrimoniais, Dorival sempre estava disposto. Até fazia questão de manter contato com a varoa da relação. Pegava o número de telefone dela e tudo. E até mais, na realidade, mas sempre fora da igreja. O importante era não escandalizar o corpo de Cristo.

Imunodeficiência Adquirida

Isso se manteve até o mês da aparição do dito Carlos. Naquele período, Dorival passou a se sentir estranho, adoecido. Resolveu consultar o médico e bingo: estava com AIDS.

Até tentou esconder da família, mas a mulher logo de cara percebeu a estranheza do marido e leu o laudo médico. Esperta como sempre, descobriu de cara que o marido era, para além de um pastor, um mulherengo.

A desgraça, pelo visto, havia caído sobre a vida de Dorival. Até mesmo a igreja descobriu, e inúmeros casos de HIV positivo foram sendo descobertos nos fiéis.

Como resultado, foi destituído do cargo de pastor, além de ser expulso de casa pela mulher que, havendo feito exames e descobrindo a contaminação pela doença, teve raiva inimaginável do marido, exigindo sua saída do lar.

Desfecho

Foi morar na rua. Caiu no alcoolismo. Tornara-se irreconhecível.

Passando frio nas madrugadas urbanas, tendo como travesseiro um litro de cachaça e de colchão um papelão, Dorival vê alguém se aproximando, alcançando roupas ao aos demais moradores de rua que, assim como ele, passavam frio naquele momento.

Era Carlos, que com seu compromisso de cuidado social, estava distribuindo agasalhos para os mendigos. Ele não era rico, não era religioso – quiçá era ateu – mas estava lá, dando de vestir aos marginalizados.

E, diante disso, Dorival não teve outra reação a não ser chorar de desgosto.

Matheus Augusto

Matheus Augusto da Cruz, acadêmico de medicina da Unidep, dono das páginas Aletheia, no Facebook e @apriorialetheia, no Instagram