Colecionador de histórias
Tá bem ruim, né?
Ubirajara de Freitas
Embora esteja bastante afastado do Jornal Opinião, pedi a nova direção que mantivesse a coluna O Colecionador de Histórias, a qual continuarei contribuindo mesmo que esporadicamente, afinal, todos nós temos ao menos uma grande história!
Ele caminha todos os dias cerca de 20 quilômetros nas ruas de Francisco Beltrão, faça chuva ou faça sol. Uma de suas poucas preocupações são os pregos e parafusos que vai catando em sua jornada solitária e descompromissada, “pois, podem furar os pneus dos carros”, diz ele. Na sua rotina diária ele também apanha alguns papéis no lixo e, ao chegar em casa diz todo orgulhoso para esposa: “Ganhei o dia! Achei vários papéis onde posso escrever”! Guarda tudo numa gaveta e no dia seguinte dona Inês, para não deixar acumular joga fora. Ele não se lembra de nada!
Parece o roteiro de um filme, mas é uma história real e muitos já perceberam que estamos falando de seu Sadi Sutilli, 78, um senhor que gosta de conversar com as pessoas e gabar-se das suas casas, lotes, caminhões e termina suas frases sempre com o bordão: “Tá bem ruim, né?”. Então fizemos uma visita na família Sutilli e descobrimos que nesse romance da vida real, a verdadeira protagonista é a esposa Inês Sutilli, 67, uma gaúcha de Santa Cruz do Sul, que chegou ainda pequena em Palma Sola – SC e lá conheceu e se casou com Sadi, há 51 anos!
Ela conta que a família do seu futuro marido eram os sapateiros da cidade e quando se casaram montaram um pequeno mercado em sociedade com o irmão do Sadi. “Começamos com pouquinho e fomos crescendo, enquanto o Sadi fazia as viagens para o Mato Grosso e São Paulo, eu, meu cunhado e sua esposa cuidávamos do mercado. Sadi tinha uns quatro caminhões e duas caminhonetes, que utilizava para puxar porco, madeira, mudança, etc. Não sabia dizer não. Ajudava todo mundo. Viajava de madrugada. Era muito sofrido mas víamos o patrimônio crescer”!
Em 1980 vieram morar em Francisco Beltrão e dona Inês se lembra com orgulho e tristeza que o Sadi era muito ativo e bom nos negócios. Oito anos depois deu uma encefalite viral e Sadi entrou em coma por 15 dias. Desenganado pelos médicos ele sobreviveu, mas com graves sequelas. “Pouco antes de entrar em coma ele me pediu que fizesse uma cobrança e pagasse a última prestação de uma casa próximo ao Parque de Exposições. Nem sabia desse negócio e fiz tudo que ele me pediu na parte da manhã. À tarde quando retornei no hospital ele não se lembrava do que tinha me pedido, depois convulsionou e entrou em coma!”, conta Inês, que continua: “tivemos que vender a casa e outros bens para pagar as despesas hospitalares, imagina quantos outros negócios ele não conseguiu me dizer”!
Não foi uma época fácil para a família, enquanto dona Inês trabalhava como vendedora tinha o marido que dependia de todos os cuidados, mais tarde, para agravar ainda mais a situação, a filha Eliziane sofreu um gravíssimo acidente e também teve que ser atendida pela mãe.
Geralmente quando uma casa está sendo construída, a família vai visitar a obra e se orgulhar de sua nova conquista. Neste caso, seu Sadi mergulhou em completa alienação, não se importando com mais nada. “A casa nova ele ainda demorou uma semana pra achar, não se manifestou na construção, não veio um dia vê-la. Uma ocasião ele ficou dentro do carro e não quis nem descer. Ele não conhece celular e nem o covid, não liga mais pra dinheiro; não da muita bola pra comida e antes adorava churrasquear, tomava uma cervejinha com os amigos e não abria mão de ir à praia todos os anos; agora, quando tem visita, ele não interage, se isola e ao chegar a hora da sua caminhada rotineira nada o impede”.
No início da doença dona Inês enfrentou não apenas a dificuldade de lidar com algo novo e assustador, mas principalmente porque o Sadi não reconhecia nem a própria filha. Teve que aprender tudo novamente do zero, igual a um bebê. De um dia pra outro teve uma melhora surpreendente e ficou mais calmo depois que desenvolveu sua rotina de caminhada, de catar objetos e outras manias, tal como lavar a louça e enfeitar a casa sempre da mesma maneira, colocando maçãs dentro de xícaras, cuidadosamente escolhidas para a arrumação. Agora ele mesmo se veste, arruma a mesa do café, leva o lixo, estende e recolhe a roupa… Como Sadi viajava muito para o Mato Grosso, trazia muita madeira nobre e até hoje se orgulha de uma mesa que tem na área, às vezes traz pessoas desconhecidas só para mostrar a mesa. “Coisas do passado ele lembra um pouco, mas coisas do presente não adianta ensinar, porque dali a cinco minutos ele não lembra mais nada”!
Ele já apanhou na rua, porque as pessoas não têm paciência. Ele conta sempre a mesma história, que possui ainda seus caminhões, suas casas e seus lotes. De fato ele chegou a tê-los, mas devido sua condição, parte foi para o tratamento, parte foi para subsistência da família. “Apesar dele parecer um andarilho esquisito, em casa Sadi tem uma vida muito confortável e é bem cuidado. Tudo o que os médicos pediram para fazer nós fizemos, buscamos inúmeros tratamentos. Sempre disse que iria cuidar dele até o fim. Aos 35 anos de idade minha vida deu uma grande reviravolta e mesmo assim, com muita paciência, com muito trabalho e determinação mantive minha família unida e feliz”!