CRÔNICAS

Memórias construídas ao longo da vida

Recordações, saudades e aprendizados fazem parte dos momentos inesquecíveis de quem vive com longevidade.O tempo passa para todos, mas quando viver é bom parece rápido como um estalo dos dedos.Novas gerações crescem num piscar de olhos, diante delas, a única certeza da vida: a despedida.

Quando se é jovem a pressa é uma companhia constante, pouco se pensa sobre o fim, mas um dia ele chega de surpresa, de mansinho ou disfarçado, e leva de nós quem tanto amamos. Por mais que a lucidez vence a carga dos anos, o corpo tem um prazo de validade predeterminado. Na esperança de algo melhor, acreditamos naquilo que nossos olhos não podem ver.O desapego e a confiança são necessários para a concretização dos mistérios da fé. É como se Deus lançasse na terra muitas sementes para germinar,aqui, elas se desenvolvem e dão frutos, mas o verdadeiro florescer acontece em outro lugar.

Assim como dona Iolanda, a velha casa ainda está em pé, sempre bem cuidada pelos seus habitantes. Como um corpo que precisa de remédios para melhorar na hora da doença, ela recebeu reformas, pinturas e reforços para se manter conservada por mais de um século. Dizem que as paredes têm memória, se essas prosopopeias realmente ganhassem vida, elas teriam muitas histórias para contar. Foi entre essas paredes que a avó de dona Iolanda deu gritos de dor e alegria ao ver os filhos nascerem, ali, também, deu seu último adeus ao mundo para ir ficar ao lado de Deus.

Entre as árvores, embaixo da pitangueira, foi o lugar onde a sua mãe casou, na mesma sombra estendeu a toalha para que ela e seus irmãos pudessem fazer piquenique. As rosas do jardim foram testemunhas do primeiro beijo roubado,também,acompanharam o seu pedido de noivado. Na riqueza de todos os cantos, a varanda em formato de éle foi o berço das festividades. O espaço das rodas de conversas, das cantorias, dos almoços de domingo, onde os filhos espalharam muitos brinquedos, os netos correram de um lado para o outro com as moto case os bisnetos dormiram, tranquilamente, no balanço da rede.

Ah! Se essa casa pudesse expressar suas emoções, certamente, lágrimas brotariam pelas janelas para mostrar que cumpriu a sua missão, já não era a mais moderna das construções,precisava dar espaço para novas edificações, mesmo assim, nunca perdeu o aconchego. Sobre aquele chão teve suas paredes erguidas, ganhou uma base e um teto, formou um abrigo, transformou uma construção num lar repleto de histórias.

Dona Iolanda olha para as lajotas rachadas e pensa nas fissuras que teve na sua vida.As folhas das árvores, lentamente, formam um tapete sobre o chão para mostrar o fim da estação.O chiado da chaleira anuncia que a água está quente para o café. Mesmo com auxílio da muleta, os passos são lentos;as mãos tremem como um galho que está quase se desprendendo da árvore; as linhas profundas mapeiam a pele para mostrar que as marcas do tempo são inevitáveis. Hoje, o silêncio é o convidado de honra na casa, diante dele, o sino dos ventos faz questão de cantar, o sopro balança a rede, e, também,bate forte nas janelas anunciando que ele está presente. O corpo cai como uma folha no chão. As madeiras do assoalho são os braços que acolhem, o semblante é de alguém que teve um sonho feliz.Agora,Dona Iolanda espera que seus entes queridos a encontrem,aqui ou em outro lugar.

Joceane Priamo

Joceane Priamo nasceu em Francisco Beltrão-PR, em 23 de maio de 1988. É formada em Letras Português e Literatura pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO) e Pedagogia pela Faculdade Campos Elíseos (FCE), pós-graduada em Docência no Ensino Superior, Antropologia, Educação Especial e Intelectual. Em março de 2021, lançou seu primeiro livro, Francisco Beltrão entre Versos e Sonhos. Participa da coordenação da Via Poesis e como membro do Centro de Letras de Francisco Beltrão, é professora, escritora, poetisa e cronista.